sábado, 24 de outubro de 2009

Quebrando os muros




O resultado da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) foi divulgado esses dias trazendo boas novas: a melhoria do emprego e da renda verificada até setembro de 2008 fez com que 3,8 milhões de brasileiros deixassem a linha de pobreza no ano passado. É um feito pra ser comemorado. E muito. Na comparação com 1993, o país registrou uma queda de mais da metade no percentual de pobres: naquele ano, a proporção de pobres era de 35%. Em 2008, o número registrado foi de 16%, o menor desde que a pesquisa começou a ser feita, em 1992. A linha que define a pobreza é aquela que abrange uma renda domiciliar per capita de até R$ 144. Em parte, esses bons resultados estão sendo atingidos pela alta do salário mínimo, que vem se recuperando rapidamente, beneficiando milhões de pessoas no Brasil.


Pois é, são boas notícias. Ótimas, de verdade. Fico muito feliz quando vejo as pessoas tendo oportunidades. E sair da linha da pobreza é um prenúncio de maiores oportunidades. Pode significar, por exemplo, o acesso a itens ligados a status nas classes mais pobres, como celular de modelo novíssimo – ainda que dividido em 12 parcelas no crediário –, calça jeans “de marca”, cabelo liso de salão, produtos Natura e cerveja Skol na festa tão sonhada, que finalmente pode vir a acontecer. Essas coisas que fazem essas pessoas não se sentirem um zero à esquerda, que as fazem lembrar de que elas têm valor e de que trabalhar é o caminho pra conseguir o que querem dignamente.


Sem dúvida, isso é fantástico. Mas é certo que não basta. Sair da linha da pobreza e ostentar um celular zero bala é insuficiente pra comprar a aceitação dos mais endinheirados – muitas vezes, o tal celular é até motivo de deboche. Na verdade, tem um muro, de concreto, que precisa ser quebrado pros pobres entrarem no mundo do dinheiro. E não estou usando uma metáfora: o muro pode ser muro mesmo, de concreto. Como o que vai ser colocado em volta de algumas favelas e na beira da Linha Amarela, que vai dar acesso a várias atrações das Olimpíadas, no Rio de Janeiro.


Gente, isso é o cúmulo do absurdo! E ainda dão a desculpa esfarrapada que o muro em volta das favelas é pra proteger o meio ambiente do crescimento “urbano”, e que o muro em volta das favelas à beira da Linha Amarela é pra proteger os próprios moradores do barulho da rodovia!!! Tudo isso é indignante. Imaginem o que é você voltar pra sua casa na “cidade murada”. Imaginem o que essa pessoa deve sentir. Se já é humilhante ter que morar numa favela, imaginem voltar pra casa depois de um dia de trabalho num emprego que não te paga mais de um salário mínimo – que te fez sair da linha da pobreza, mas não te fez passar pro outro lado do muro –, depois de ter pegado duas conduções lotadas pra ir e duas pra voltar, e ter que atravessar o tal muro, que te separa oficialmente do mundo do dinheiro... Se essas pessoas já não tinham expressão social, ficarão cada vez mais invisíveis. Chegamos a um ponto em que a mera visão da pobreza é repugnante. Os olhos privilegiados dos moradores da cidade ficarão poupados de uma imagem perturbadora de algo que não sabemos como lidar. Preferiram, então, varrer a poeira pra baixo do tapete.... pra trás do muro. Mas se esquecem de que quando sacudirem este tapete, o risco de tudo ter ficado encardido é enorme.


Pra mim, está tudo errado. Já que o muro existe, independentemente de estar lá ou não, e de a pessoa morar na favela ou na periferia, acho que ele deve ser quebrado, e não transposto. Mas nós, do lado de cá do muro, precisamos contribuir com as ferramentas. Precisamos aceitar a ideia de que todos têm direito à ascensão social, e de que isso não vai nos ameaçar. Acho que esse é o calo da burguesia, é o ponto nevrálgico da questão. De maneira geral, a pobreza é ligada à subserviência, à prestação de serviços pesados, à condição subalterna. O que poderia acontecer se não existisse mais pobreza? Primeiro, teríamos que pôr a mão na massa, porque o leque de opções de emprego passaria a ser maior, principalmente por causa do maior acesso à educação – patroas, tremei!!! Depois, não poderíamos exercer nossa sede de poder, e mandar e desmandar à vontade, porque as pessoas poderiam escolher mais os empregos, sem ter a obrigação de aceitarem tudo caladas. E por último, teríamos que pagar um pouco mais pelos serviços que as classes pobres nos prestam hoje por um custo muito baixo. Será que tudo isso ameaça tanto?


Acho que ia acontecer é muita coisa legal, se as pessoas se tocassem que estão sendo preconceituosas e lidando com os mais pobres de forma defensiva, impedido-os, ainda que muitas vezes incoscientemente, de entrar no “nosso” mundo. Primeiro, a violência ia diminuir muito, porque se sentir rejeitado é ainda pior do que sentir fome: causa até guerra. Depois, a gente se sentiria muito melhor como seres humanos, sentir que estamos fazendo justiça. Não iríamos sentir tanta culpa de ter as coisas, porque estaríamos sentindo que estamos contribuindo pras pessoas que não têm poderem se sentir no direito de batalhar por elas, num ambiente menos hostil.


Enfim, e falo por experiência própria, é muito legal poder lidar com os mais pobres sem preconceito. É muito enriquecedor. Acho que todo mundo deveria fazer isso. Trocar experiências é fantástico. Perceber que você, pela simples convivência aberta com os que têm pouco dinheiro, está contribuindo pra quererem melhorar o padrão de vida, estudar, viajar e ter computador e internet. E perceber que essas pessoas também estão contribuindo pra sua vida melhorar também. Experimentem ir a uma festa na periferia. Ou passar por lá num fim de tarde de sábado, pra irem buscar sua filha que foi brincar na casa da sua mensalista, diarista ou passadeira. E aí, entrem um pouco e vão pra cozinha, que é onde as conversas mais íntimas acontecem, prosear um pouco com ela, comer um pedaço de bolo (delicioso, diga-se de passagem) enquanto as filhas pedem “altas” da brincadeira. Garanto que vai ser uma (primeira) experiência inesquecível. E vocês podem até ficar grandes amigas. Isso acontece – garanto. Neste sábado à tardinha, quando vocês dirigirem de volta pra casa, aproveitem pra entrar em outra freqüência. Tentem ver as coisas com outros olhos e vejam o lirismo da cena de vizinhos reunidos nas cadeiras colocadas nos passeios das casas, conversando numa boa e vendo os filhos brincarem na rua. Que ainda deixam a vida passar sem pressa. Que ainda conseguem sentir um grande prazer com essas coisas que não precisam de dinheiro e que, por isso, são muito mais livres que nós.


E quanto à festa, vocês vão se divertir e se emocionar. Vão perceber que a gente não precisa de muito pra ser feliz. E que quanto mais diversificado é o público, melhor é a festa.

2 comentários:

  1. Isso aí, Bela! nós que te conhecemos - graças a Deus - de perto sabemos que entre vc e o resto de todo o mundo nenhum muro te deteve.
    Letícia

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  2. Que bom Bela, ver uma reflexão lúcida como essa. Pena que, como conversamos em Mar Del Plata, a maior parte da elite brasileira ainda seja tão burra, e não enxergue que todos têm a ganhar com o fim, ou minimamente, a diminuição do grande abismo social que existe em nosso país. Pena que a maioria dessa elite, ainda "trema" diante da possibilidade da igualdade. E é justamente essa elite que como quadrúpedes andam com uma viseira, que não lhes permite olhar ao redor, (com a diferença que para os quadrúpedes essa é imposta, e para a elite é uma opção que colocá-la)que brada furiosa contra as mínimas medidas sociais que são tomadas, rotulando-as de assitencialista e dizendo que não resolvem a questão de fato. Realmente, uma ajuda do bolsa família não resolve a questaõ da pobreza, mas resolve o problema de quem não teria o que comer aquele dia, e não pode esperar até que todos os problemas socias do país sejam resolvidos para ter o que oferecer a seus filhos. As cotas para negros e estudantes oriundos do ensino público nas universidades não resolve o problema do péssimo ensino público oferecido pelo Estado, mas dá a oportunidade daquele que não pode estudar em colégios particulares de tentar disputar hoje, com um mínimo de chance, uma vaga numa escola particular juntamente com aqueles ao qual a classe social e cor da pele sempre privilegiaram.
    Acho que vale muito a pena seu texto para refletirmos. Cidinha

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