sexta-feira, 29 de abril de 2016

Primeira carta de sóror Izabella aos Iquenses



Minhas irmãs, meus irmãos,
Em verdade, em verdade vos digo:
Em meio a sangue e restos humanos, ulula o óbvio: a miserabilidade da condição humana. A solidão, insólita, líquida, fervilhante, febril: a liquefação de nossa inteireza num mar de impossibilidades.
Em verdade, em verdade, vos digo:
A condição humana requer que olhemos para a causa final aristotélica: qual a finalidade das coisas existirem e serem como são?
Em verdade, em verdade vos digo:
Só me sei eu porque sei você
Sou porque somos
Contra a miséria humana, capital afetivo. Sororidade, fraternidade e solidariedade! A partilha do sensível é a condição sine qua non para o empoderamento da (nossa) humanidade, para que voltemos ao estado sólido e viabilizemos nossa existência. Golpes virão, e entregas erradas idem. Fortaleçamo-nos a partir deles. De nossa razão, precisamos exigir discernimento: virá, mais cedo ou mais tarde.
Minhas irmãs, meus irmãos,
Sem mais, ora me despeço.
Invocando Anima (Mundi), força primeira que nos une, para lembrar-vos que ela é feita de nós. Elos que a materializam e a suportam, e a humanizam. Unamo-nos! Não esqueçamos nunca de que nossa matéria é capital humano: na diversidade de cartografias que observamos em nossa trajetória, é somente quando consideramos a do desejo que podemos cumprir nossa missão.   
Sóror Izabella
29-04-2016

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Impressões e reflexões sobre a ilha de Fidel

Tá certo que já tem um mês que eu voltei de lá, e durante a viagem já estava com uma vontade grande de escrever uma postagem a respeito. Mas cadê coragem? Trava tudo, e não sai nem por decreto.
Decreto? Por que usei essa palavra? Será que isso tem alguma coisa a ver com Cuba?
De tão impactante, a Ilha de Fidel é daqueles lugares que te nocauteiam. Te deixam momentaneamente paralisada. E nem precisa de lutador de boxe pra fazer isso – que, aliás, andam em falta por lá: os feras foram em penca pra Miami.
Penca? De novo me pego usando uma referência inconsciente ao universo cubano: a banana é dos principais produtos de exportação de Cuba. Representa 70 % da produção de frutas do país. Seria a República das bananas às avessas?
Ao desembarcar em Havana, o aeroporto já causa impressão. O fato de não carimbarem a sua entrada no país em seu passaporte, por mais avisado que você esteja, causa uma sensação estranha. Um certo desconforto, talvez. Dá um pouco de dó – não no mau sentido, mas no sentido daquela visão que te faz enternecer.
Ternura: perdê-la, jamais. Você começa a se perguntar o que vem por aí – será que é tudo tão diferente assim? E torce pra ser mesmo. Afinal, o que vão fazer lá hordas e hordas de turistas senão pra ver uma realidade tão desejadamente única num mundo tão previsivelmente globalizado? Seria o país o depositário de nossas ilusões perdidas? Utopia? Tirania?
Chegando no saguão do desembarque, visualmente é tudo tranquilizador, e o coração dá uma desacelerada quando vamos ao cajero automático e conseguimos sacar os CUCs (moeda local que vale pros estrangeiros e cuja cotação é praticamente 1 pra 1 em relação ao dólar) sem nenhum problema. E vamos então pegar um táxi, que por via das dúvidas, madrugada é perigosa em qualquer lugar do mundo...
Mas aquela brisa cálida daquela noite... não vou esquecer nunca. Ficou pra sempre impregnada no meu nariz, no meu pulmão e na minha alma. Naquele momento – como acontece, aliás, quase todas as vezes quando chego pela primeira vez a algum lugar – eu engoli Cuba. Sorvi – a inteira, comendo com os olhos. Na verdade, foi uma sensação diferente da de todos os lugares, porque muita expectativa dá palpitação, e não sei se é isso que começa a provocar a sensação de uma leve vertigem. Tenho a sensação clara de que a adrenalina está aumentando vertiginosamente no sangue: agora é encarar ou fugir.
Mas por que isso? Será mesmo uma luta? De que contra que? Será Cuba uma figura assim tão sedutora, a ponto de me colocar num lugar de lutar contra meu próprio desejo? Afinal, Cuba é um guerrilheiro aguerrido e barbudo, que fala grosso e dá as cartas, e enfrenta Golias - tio Sam com uma altivez improvável. Mas é militar e repressora, e me ensinaram que devemos prezar a liberdade individual acima de tudo. Então, por que tamanho fascínio? Teria cinco dias, e só isso, pra responder a essa pergunta.
Estamos, então no ringue. Agora somos Cuba e eu. Começo a estudar o “adversário”: desejo suas virtudes, e quero mais que derrotá-las: quero tê-las em mim. Como, afinal, fazem os canibais. Quero estudar todos os seus movimentos.
Tenho a impressão de que tal estado de torpor me fez acreditar que fiz uma viagem no tempo, e estamos na década de 50. Casas e carros pararam no tempo. Não há miséria, mas tampouco riqueza à vista. Será que isso é bom? Chegamos ao hotel, e é outro choque: é lindo, fresco e suntuoso. Com direito a wi-fi (pago à parte) no lobby e todos os confortos que o dinheiro pode comprar. Esse é um dos pontos que te intrigam de cara: há duas realidades paralelas, do povo nas ruas e dos turistas. São duas moedas – os locais recebem em outra moeda diferente da que os turistas têm acesso, que vale 500 vezes menos, e com a qual pagam o acesso ao transporte público, à cesta básica, a museus, esses bens necessários – cultura lá é considerada item necessário. Pras demais necessidades (ou vontades, dependendo do ponto de vista) – que incluem, por exemplo, mais comida além da cota individual permitida pelo governo – os cubanos têm que usar a moeda “dos estrangeiros”, e aí a conta não fecha, porque a moeda vale mais ou menos o mesmo que o dólar, e o piso salarial dos cubanos é de 10 dólares em média. Imagina que um sabonete Lux custa 0,45 CUC. É caríssimo!!! 5% do salário de um empregado da construção civil vão num sabonete, se ele quiser esse “luxo”.
Já no dia seguinte, fomos passear ao léu pelo centro e ficamos impressionados pelo excesso de abordagens dos locais, que pedem, pedem e pedem sem parar. Dá pra entender, por causa do contexto de privação em que eles vivem. No começo, incomoda, já que a gente quer ser simpático, dá papo, e isso só piora as coisas: de novo, a sedução cubana toma conta e a gente se vê envolvido na conversa e abre mesmo a mão. Depois a gente passa a ver pelo lado bom (eles só pedem, não ameaçam nem assaltam) e começa a sentir uma segurança impensável pra quem circula nos grandes centros urbanos do Brasil. A abordagem é grande, mas não vimos nada de violência, mesmo naquelas ruazinhas com aquelas casas que na nossa cabeça são perfeitos cortiços. É uma pobreza aparentemente decente.
Às tantas, um casal muito simpático nos pergunta se já fomos à fábrica de charutos, e respondemos que não, que era nosso primeiro contato com a cidade. Eles então nos convidam pra irmos a uma casa cujo proprietário (sim, os cubanos são donos das próprias casas) seria membro da cooperativa dos trabalhadores da indústria do tabaco, para vermos vários tipos de charutos, e eventualmente comprar alguns. Entramos na casa, sentamos, e acabamos levando duas caixas. Detalhe: no Brasil, compramos uma caixa de Cohiba (25 unidades) por 800 reais, e lá compramos por mais ou menos 200 reais. Na loja do hotel, a unidade era vendida por 12 dólares, o que dá mais ou menos 470 reais a caixa. Antes de irmos embora, questionamos o carregador de malas dentro do próprio hotel, e ele nos passou um cartão de um conhecido, que chegou no lobby em 10 minutos e, depois de negociarmos mais firme, conseguimos fechar mais duas caixas por inacreditáveis 70 dólares!!! 60 reais cada caixa!!! Estranho, não? A impressão inicial do sistema político-econômico não foi nada boa: parece que ele favorece muito um esquema paralelo, e já que o governo regula demais o acesso ao capital, eles o conseguem por outros meios. Mas pensando bem, no capitalismo isso também acontece.
Continuando o passeio, escutamos música, música, muita música. É inebriante. Contagia mesmo. Em qualquer lugar, em uma biboca ou em hoteizões de luxo, os calientes ritmos locais são a trilha sonora da vida dos cubanos, em qualquer momento. E eles conhecem muito do assunto, adoram e têm casas noturnas, uma ao lado da outra, especializadas nos mais diversos ritmos – do bolero ao jazz, que aliás é uma paixão dos havaneses. Além de tudo, têm a sedução da música...
Num segundo passeio, o lado feio do sistema apareceu nu e cru – estávamos esperando transporte no centrão da cidade, e vieram duas moças com uma criança pequena, nos pedindo pra comprar leite em pó pro bebê. Estávamos em frente a uma mercearia, e perguntamos quanto era. Cada pacote de leite era 2,50 CUC. Pasmem!!! Um pacotinho de leite a 4 reais!!! Isso porque a cota de leite da criança havia esgotado, e eles não tinham direito a mais com a moeda deles. O recurso é pedir pra algum estrangeiro comprar. E isso é muito esquisito! De novo, a sensação de que o sistema induz a entrar em esquemas duvidosos, porque ninguém aceita calmamente viver com menos do que julga necessário, e como não há saída pela via legal, dá-se um jeito.
Isso então me levou a pensar o que seria dos cubanos sem os turistas. E esse pensamento me causou um mal-estar. Me parece que os turistas vão em massa pra lá, sobretudo, pra ver o sistema socialista in loco, vivenciar um pouquinho dessa realidade a priori tão diferente da que estamos acostumados. Só que, estando lá, fica claro que isso não vai se manter por muito tempo. Ninguém gosta de viver com pouco, e nem de sentir que tem todo um mundo lá fora, que chega até eles das mais variadas formas (incluindo novelas brasileiras, que aliás são adoradas por eles!), com toda sorte de apelos aos quais eles não têm acesso. Sentir-se isolado (acho que alijado seria um termo mais apropriado) num mundo globalizado não deve ser nada bom. E é inevitável: o acesso a esse mundo passa necessariamente pelo acesso ao capital.
E quando a transição pro capitalismo for consumada? Os turistas vão ter o mesmo interesse? Os cubanos precisam visceralmente do dinheiro do turismo, e os turistas se sentem incrivelmente atraídos pelo sistema cubano. E se esse sistema colapsar? Deu uma sensação inicial de que o sistema é algo feito pra inglês ver, porque na vida real as práticas capitalistas estão a todo vapor. A ilha pareceu um imenso zoológico – ou seria circo? – em que as pessoas estão engaioladas, sendo atração turística, às custas da privação da liberdade. E o pior é que a jaula é de vidro, porque não há barreiras físicas pro mundo. É de enlouquecer.
Essa impressão ficou mais forte quando fomos jantar em um restaurante muito frequentado por locais. Enfrenta-se uma fila enorme pra entrar (uma hora, mais ou menos), e lá dentro não é nada demais pro padrão dos turistas. Chamou muito a atenção foi a fartura: um prato dava tranquilamente pra três. Os preços dos vinhos também chamaram a atenção: um vinho espanhol dos bons, que em supermercados do Brasil custa 60 reais, lá era o equivalente a mais ou menos 24 reais, e isso no restaurante! A ideia inicial de que o país era caro pros turistas caiu definitivamente por terra. Talvez a fartura da comida, aliada aos bons preços, explicasse a lotação do restaurante. Mas fiquei muito intrigada, porque os preços eram bons pra nós, mas pra eles eram muito altos! Perguntei pro garçom se havia um outro cardápio pra eles, com a moeda local, e ele respondeu que não, que os preços eram os mesmos! Fiquei chocada. Como eles tinham dinheiro praquilo? O garçom disse que as pessoas conseguem dinheiro de várias maneiras ilegais, ou “paralelas” – entre elas, remessas de dinheiro de parentes que vivem sobretudo nos Estados Unidos – mas peraí, alguém falou em igualdade de oportunidades ? Isso não é favorecimento?
Outras coisas me marcaram durante minha estadia lá: os garçons que são também funcionários públicos – algo muito inusitado pra minha cabeça, isso de misturar Estado e lazer –, as cubanas super cheirosas, que passam e deixam um rastro de perfume, as carecas dos homens, cuidadosamente fabricadas com máquina zero (como há carecas lá!), a educação e instrução da população em geral, as galerias de compras com aqueles sapatos que eram cópias grosseiras dos que compramos aqui, a cantora estupenda num bar de música local (que às tantas do show, quando cantava uma música que evocava a religiosidade de seus ancestrais africanos, acabou “recebendo” mesmo “o santo” e teve que ser acudida por alguém), o atrevimento e a naturalidade com que as meninas usam roupas curtinhas e decotadas, e ninguém passa cantada, o calor de rachar coquinho (olha aí outro símbolo tropical, não por acaso), o teco-teco russo caindo aos pedaços que nos levou pra Cayo Largo, os táxis que nos deixavam com medo de entrar de tão velhos e mal conservados, a altivez, a beleza, o aplomb e a presença magnética do povo em geral, a música, a música, a música.
E o arco-íris. Um dia que estávamos caminhando na Plaza Vieja, caiu um pancadão de chuva de verão, e logo depois foi só olhar pro céu e lá estava ele. Enorme, lindo, democrático, coloridíssimo. A composição ideal daquele cenário do centro antigo. O cenário me deixou levemente grogue. Não chegava a ser um nocaute, mas sentia que ele estava próximo.
Nos outros dias que passamos na ilha, a impressão inicial foi se esvaindo: não voltei mais impressionada com a privação de liberdade do povo que com seu savoir vivre. As contradições do sistema realmente impressionam: não existe analfabetismo no país, toda a população é obrigada a ir pra escola até os 14 anos, o acesso ao ensino superior é realmente aberto a todos e sem custos, a saúde é um colosso, o turismo funciona maravilhosamente, e há, senão um nível de igualdade, pelo menos uma redução drástica das desigualdades do sistema capitalista, ao mesmo tempo em que o capital circula, sim, à luz do dia em negócios não supervisionados pelo governo, não há liberdade pra viajar pra fora do país, e até mesmo a liberdade de comprar é cerceada, já que os produtos são caríssimos, poucos importados chegam e o salário é curto. Imagino como fica a questão identitária dos cubanos, nesses tempos em que o consum(ism)o nos define em larga medida e o querer ter grita dentro de nós. Será que eles desenvolveram um outro tipo de relação com o consumo? Ou seriam extremamente frustrados com essa privação? E na questão da liberdade? Será possível que o modo de vida “socialista” os torne mais livres, uma vez que menos escravos do capital? Ou será que isso só os torna escravos da capital, já que mal podem sair de seu perímetro?
Bem, frustração não é exatamente a palavra pra definir o estado de espírito desses lutadores. A sensação que fica pra nós é que precisaríamos de alguns meses morando lá, convivendo na intimidade com a população, pra entender toda a complexidade do sistema. Pra nós é indecifrável, e ponto. Mas olha, quer saber? Voltei de lá apaixonada. Foi nocaute mesmo, e acabei me entregando. Não dá mesmo pra pensar direito sob 40 graus, e os sentidos falam mais alto.
Os estereótipos que tinha antes de chegar foram embora, mas ficou coisa muito melhor no lugar. Uma sensação de esperança. A mesma que os cubanos dizem e parecem mesmo ter. Esperança de que a sua luta e sua revolución possa ter valido a pena: quem sabe eles não encontram mesmo uma via alternativa, com a chegada gradual da economia de mercado sendo recebida com a mesma postura crítica com que enfrentam as questões políticas em geral? Quem sabe não assistiremos a uma economia de mercado mais justa e igualitária tomando forma por lá? Isso só o tempo vai responder.
No momento, Cuba pra mim é um arco-íris. Que chega lindo, e sedutor, depois da pancada. Ele é bem colorido, e traz esperança de estiagem. Ao mesmo tempo, só apareceu porque houve um refresco no calor. É o melhor dos mundos. E ainda dá direito, a quem se atrever a trilhar seu caminho, de encontrar um pote de ouro no fim. Mas isso, só praqueles que acreditam. Pros aguerridos, pros fortes: hasta la victoria, siempre!

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Chuva de meteoros

Escrevo este texto com os olhos jorrando. Estranhamente, comecei a chorar enquanto lia sobre a chuva de meteoros que vai poder ser vista a olho nu agora a noite. Entre 40 e 60 meteoros por hora: um espetáculo arrebatador.

Já enquanto lia, fui invadida por essa sensação, de completo arrebatamento. É como se, num ínfimo momento, tudo estivesse explicado: eureka. Dos primórdios de nossa existência primitiva, lembro que sou feita de pó. Cósmico? Sou pó, e para o pó voltarei. Mas me lembro que a substância do pó é pura estrela. Átomos astrais, que carregam consigo a memória de todo o tempo e todo o espaço. Afinal, tudo é uma coisa só. E a magia acontece. Olhar para o céu e se reconhecer nas estrelas! Lembrar que o jorro dos meus olhos é resultado do jorro do amor divino que criou tudo que existe, todas as galáxias e todas as tradições, pelos séculos e séculos. O poder criativo do Big Bang que acontece todos os dias, quando usamos nossa energia criativa exatamente naquilo que deve ser usada. Tudo que está em cima é igual ao que está embaixo.

E passada a fase de fruição do momento divino, e tentando entendê-lo, me pergunto, já intuindo a resposta, por qual motivo a astronomia mexe tanto conosco. É um fascínio milenar, absoluto. Acredito que a resposta está na minha reação à matéria que acabei de ler: olhar para o céu nos lembra de nossa condição humana. Elevar a alma nos envergonha de nossas atitudes apequenadas do dia a dia. Lembrar de nossa condição humana, ressaltando a nossa humanidade com toda a sua associação de significados positivos, nos faz lembrar que somos reflexo de uma coisa muito sublime, muito perfeita, que está acima de nós, e que se faz visível sob forma de meteoros. Poeira de estrelas. Linda metáfora, da qual me aproprio aqui.

No espetáculo de hoje, o cometa Halley, que é um resquício antigo da formação do sistema solar, faz vários voos kamikazes na atmosfera, e cada meteoro que vemos é um pedaço seu fazendo um voo. Duas vezes por ano, nosso planeta cruza o caminho das partículas de poeira gelada da trilha percorrida pelo cometa em sua trajetória. Tais precisão e beleza nos emocionam e nos fazem lembrar que fomos feitos pra brilhar, à imagem e semelhança dos corpos celestes. Tal espetáculo é um presente do Criador, querendo nos acarinhar e nos recordar de que o que rege o Universo é a Perfeição e a Simetria, por mais imperfeitos e assimétricos que possam parecer os acontecimentos da vida. É tudo uma questão de ponto de vista. De elevar a alma e ver de cima.

Definitivamente, uma chuva de estrelas nos lembra o plano do Grande Arquiteto do Universo. E que projeto! Somos feitos da mesma matéria, e é matéria de estrelas. Pó de pirlimpimpim. Somos tudo, e podemos tudo, porque esta matéria é puro amor divino. É pura Consciência vibrante. Que foi capaz de explodir em vários pedaços, astros e estrelas, humanos e celestes. Sim, nós podemos! Podemos ser brilhantes. Nascemos pra isso e esse é nosso destino necessário. Mais cedo ou mais tarde, aprenderemos a elevar o olhar e a alma e mantê-los neste estado permanentemente. Vamos aos poucos, mesmo que isso leve milênios, nos apropriando da ideia de que Consciência e Poder são a mesma coisa. São inatos em nós. Não precisa de guerra nem disputa pra adquiri-los, porque já são algo que temos. Tudo vem de Deus, e é Deus: consciência, poder, amor. Corpos celestes. Corpos humanos. Energia cósmica. Nossa alma imortal.

Somos grandes: infinitos.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Elogio à loucura


Queridos leitores

Depois de um período de indefinições e excessivas reflexões, que de uma maneira ou de outra provocaram um bloqueio criativo, resolvi finalmente voltar a escrever! Pode ser que o que tenha motivado a volta seja a urgência de vida, talvez a chama santa da loucura. Provavelmente, as duas coisas.

Há tempos ensaio escrever um texto sobre a loucura, mas é sempre tão difícil... Fiquei muitas vezes me questionando por que. Até que percebi que era difícil porque, muitas vezes, ela não pode ser tratada como objeto. Tal distância de segurança não ajuda em nada. Percebi que tinha, sim, que me assujeitar a ela. Ou melhor, sabê-la viva em mim – onde há vida, há loucura – e fazer dela minha aliada, domesticando-a na medida certa. Relacionando com ela dessa maneira, dá pra ser feliz. Dá pra escrever, viver, trabalhar e divertir.

Explico melhor. A loucura santa é aquela comichão que temos de fazer as coisas, e que está além da razão e de todas as coisas pequenas, dos estereótipos, dos preconceitos, da coerção social e de tudo aquilo que insiste em nos fazer estacionar. É aquilo que te faz esquecer os medos. Te faz mostrar a cara e superar o medo do ridículo. Da rejeição. Da frustração. Da impostura. Da perda. Na verdade, ela te faz achar que você tá podendo. E quer coisa melhor do que isso? Sem a loucura santa, a humanidade não teria feito tantas maravilhas, em explosões criativas que certamente usaram-na como combustão. Não teriam sido vividas tantas plenas histórias de amor – assim como outras tantas não teriam sido desfeitas. Não teríamos filhos. Não existiria a pesquisa científica, principalmente em áreas abstratas, nas quais se trabalha com entidades invisíveis e pouco prováveis. Não existiria o détour, aquele “giro” analítico que permite que o conhecimento novo seja produzido. Metafísica, religião e espiritualidade, então, seriam fora de cogitação. Aliás, não existiria nem a cogitação. Não existiria sequer a História. É a loucura que faz com que tomemos atitudes rumo à evolução. Através de uma pequena revolução interior. Fé e Coragem são produto da loucura santa. Pensando bem, talvez ela não seja nada mais do que um impulso da Alma... Nos faz transcender as limitações humanas. Sem ela, não damos um passo rumo ao desconhecido. E não é isso a vida? Sem dúvida, a loucura é vital. Absolutamente precisamos dela pra seguir em frente. A loucura está na base de qualquer construção: de realidades e de ficções.

Mas e quando a ficção toma conta da realidade? Aí a história muda de cor. Fica preta. É porque aí estrela a loucura-psicose. Loucura-loucura. Aquela clássica, doentia, sombria. A estrutura frágil de quem sofre deste mal não dá conta de lidar com o impulso vital, com aquela chama sagrada da loucura santa, que é constitutiva em nós e nos faz acreditar que somos reflexos do Divino, porque criadores e desbravadores. A natureza oprimida do psicótico não permite que a combustão desta chama aconteça de maneira saudável, e o que se vê é cinza pra todo lado. Em vez de movimento, se vê inércia. Em vez de amor, raiva. No lugar da construção, a destruição. No lugar da fé, o desespero. E sempre um vazio enorme, que parece não ser preenchido por nada. A pessoa se julga tão inferior e incapaz que acaba por ter que escapar da realidade pra dar conta de ficar viva. Ou melhor, ela acaba por viver outra realidade, negando a realidade objetiva. E aí sua identidade fica impregnada de poder, e ela pode tudo: conhece as pessoas mais importantes e as influencia, inventa as coisas mais mirabolantes, é sempre alvo da maior consideração – muitas vezes, perseguição – dos outros, e por aí vai. Mas ela não fica feliz: pelo contrário, quando vem o insight do surto, o doente piora seu quadro sempre depressivo. Ou seja, a loucura saudável não foi alimentada: ficou doente, e o que se vê é só tristeza e destruição.



Não sei o que é possível fazer para que isso não aconteça, e as pessoas possam lidar com a chama santa da maneira mais saudável possível. Aliás, se eu soubesse, já teríamos a cura pras psicoses. Mas enquanto isso não acontece, é melhor olharmos pra loucura e pros “loucos” como algo natural, próprio da natureza humana. Eles não são diferentes de nós, e o que eles têm nós também temos. Eles só não conseguem lidar com este material que temos em comum. Mas a natureza é a mesma. Muito melhor agregar que segregar. E quem não tem pelo menos um parente próximo ou amigo meio ou completamente louquinho? E quem não tem histórias divertidíssimas ou emocionantes que foram vividas com essa pessoa? Tenho dó de quem não se permite conviver com a psicose. Por preconceito, perde-se a chance de agregar outro olhar pras

coisas da vida. Não estou falando daquele louco que arrasa a vida de quem convive com ele – principalmente se ele cisma com a sua cara e começa a delirar feio com você – e ainda assim não se digna a se deixar medicar. Aí e outra história. Desde que não seja família, temos direito de escolher com quem convivemos, e isso vale pra todos os quesitos se olhe. Preconceito é que não dá.

E voltando ao começo, tenho a impressão de que a arte é um santo remédio pra acalmar a loucura. Ela permite que o psicótico delire no campo que aceita e deseja o delírio. E temos aqui uma contradição: ao mesmo tempo em que é doença, a loucura é também remédio. Ela é vital pra curar a inércia e o bloqueio criativo. Mas pode também deixar o delírio se consumir no devaneio, paralisar a pessoa e não render nenhuma forma de arte. É a própria phármakon de Platão: remédio e veneno ao mesmo tempo. Assim como a palavra.

Que venha a loucura. E que ela tenha forma de sopa de letrinha: alimenta e não engorda.



*Tenho tanto fascínio pela loucura que fui investigá-la até as últimas conseqüências, e fiz minha tese de doutorado sobre o discurso de pacientes com esquizofrenia. Pra quem tiver curiosidade, pode conferir em:

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=115121

domingo, 6 de dezembro de 2009

Dezembro



Queridos leitores, tenho o prazer de anunciar que dezembro chegou. Ao contrário de muitos, que ficam pra baixo nessa época do ano, eu fico cheia de gás. Adoro.

Pra começar, vêm os aniversários. Na minha família, 4 são de dezembro, incluindo eu. Durante muito tempo, eu não admitia que adorava comemorar aniversário. Acho que, no fundo, eu tinha medo de não me sentir suficientemente querida naquele dia. Mas depois fui percebendo que muitas vezes, pessoas que te querem muito bem também podem se esquecer de seu aniversário. Não dá pra achar que se é o centro do universo, e normalmente as pessoas têm uma rotina pesada, principalmente no fim do ano. Então fui desvinculando uma coisa da outra. E resolvi que, se era tão importante pra mim, eu que tratasse de lembrar as pessoas queridas, convidando pra se reunirem comigo no meu aniversário, e aí sim eu teria oportunidade de rever quase todas elas, abraçá-las e me sentir querida, que afinal é o que todos querem na vida.

Passando os aniversários, vêm as formaturas e confraternizações de fim de ano. E eu, que amo festa, nado de braçada. Acho tão emocionante a gente ver as pessoas vencendo mais uma etapa da vida. Celebrar é preciso. Gosto especialmente da época porque sinto no ar uma vibração diferente. Sinto que, talvez pela proximidade de um fim (no caso, o fim do ano), o sentimento de humanidade vem à tona. O sentimento fraternal de sermos essencialmente iguais e de estarmos todos no mesmo barco é muito reconfortante, e faz com que queiramos dividir experiências e celebrar juntos. Isso nos fortalece como seres humanos; nos dá força pra enfrentarmos o fato de que as coisas têm um ciclo, que nós somos finitos e que precisamos uns dos outros, já que fazemos todos parte de uma mesma engrenagem, que só funciona direito se as peças estiverem encaixadas e unidas. As pessoas ficam mais reflexivas, e isso é ótimo. Nada como uma boa análise do que foi feito pra gente lidar com nossos erros, ficarmos predispostos a mudar o que tem de ser mudado e satisfeitos com os acertos. E é nesse ponto que eu acho que acontece o erro de algumas pessoas. Em vez de ficarem felizes com o que fizeram e ganharam, ficam tristes com o que não fizeram, e essa melancolia acaba cegando o olhar, que acaba não conseguindo ver as luzes do Natal, que no meio de tudo isso, acaba chegando.

Este ano, especialmente, eu comecei a entrar nessa, um pouco antes da hora. No meu caso, acho que junta o aniversário com o fim do ano, o que proporciona um balanço ao quadrado. Comecei a sentir uma sensação ruim, ainda no mês de novembro, de incompetência, de não ter conseguido fazer tudo o que me propus a fazer. Principalmente porque no ano passado eu tinha feito tanta coisa: casei, defendi minha tese de doutorado, fiz duas mudanças de casa, viajei etc. Aos poucos, porém, fui acalmando e me lembrei que a vida acontece em ciclos: tempo de plantar e tempo de colher. E pensando bem, esse ano pra mim foi um ano de semeadura. Ao contrário de 2008, que foi regido por Marte, que impulsiona a ação, 2009 foi regido pelo Sol, que impulsiona a reflexão. Sem dúvida, é um processo dialético. Toda ação deve ser seguida por uma reflexão sobre tal ação, que por sua vez antecede uma nova ação. E são etapas igualmente importantes. A qualidade da ação vai ser determinada pela qualidade da reflexão, assim como a qualidade da fruta vai ser determinada pela qualidade da semente e do processo de semeadura. Neste ponto, eu me acalmei. Percebi que o resultado da ação reflexiva só é percebido com o coração, e não pode ser mensurado. Percebi o quanto hoje estou mais calma e mais tolerante. O quanto aceito mais as coisas que não podem ser mudadas. Percebi que estou mais em paz com a minha natureza. Percebi que estou aceitando com cada vez menos culpa os presentes que a vida me dá. E me lembrei que fiz o meu blog, que por si só já valeu tudo que não fiz no ano, tamanho o bem que me faz colocar minhas reflexões no papel – o que não deixa de ser uma ação também.

Então, me permiti curtir meu fim de ano e meu Natal. E como eu gosto de Natal! Vermelho, branco, dourado e verde dão cor à minha realidade e me remetem à minha infância. Me lembro de como eu ficava entusiasmada com todo esse cenário, e da minha ansiedade com a vinda de Papai Noel. Minha fé era cega. E, graças a Deus, meus pais sempre fizeram questão de preservar este encantamento. Lembro das brigas que cheguei a entrar pra defender a existência do Bom Velhinho. E não adiantava outra criança falar que viu os pais colocando os presentes na árvore, que eu e minhas irmãs falávamos que é claro que tinham visto, porque Papai Noel só dá presente pra quem acredita nele! Foi preciso meu pai me contar (sei que a contragosto, mas é a vida...), vestido de Papai Noel (e eu já ia pra 5ª série!), pra eu acreditar que quem me dava os presentes eram ele e minha mãe. E foi uma choradeira! Me lembro como se fosse hoje do meu espanto e da minha frustração, e de ter ido dormir soluçando. Por que Papai Noel não poderia caber nesse mundo? Será que ele era tão grande assim? Ou o mundo que era tão pequeno?

Passados mais de 20 anos, posso confessar que, no fundo, e a despeito da descrença quase geral, nunca deixei de acreditar em Papai Noel. Tenho certeza de que ele vem todo fim de ano, com um saco cheio de presentes, que eu vou abrindo ao longo do ano, que é pra estender esse gostinho. E é tanta coisa boa, que é por isso que fico tão animada quando chega o fim do ano. E quanto melhor eu tenha sido ao longo do ano, melhores são os presentes. Na verdade, a senha pra ele passar na sua casa é acreditar. Na magia. No sonho. Na vida. Que temos um Pai que sempre nos dá exatamente aquilo que pedimos – aliás, Ele sempre nos escuta. Pra alguns, ele é conhecido como Deus. Mas é muito mais gostoso pensar Nele vestido de vermelho e branco e com um saco cheio de presente. Voando em um trenó e entrando na nossa casa pela chaminé ou pelo buraco da fechadura. Sim, Ele cabe no mundo – mas só se a nossa alma for grande o suficiente pra abrigá-Lo. Porque, afinal, o mundo tem sempre o tamanho da nossa alma.

Agora, feche os olhos. Sinta a magia da vida. Busque na infância seus melhores sentimentos. Visualize um mundo de Paz, Amor e Misericórdia. Sinta a Força que te protege e te ajuda a realizar seus desejos. Acredite, do fundo do coração, que você é merecedor de todas as coisas boas que acontecem na sua vida, do perdão pelo que você se arrependeu de ter feito e de uma nova chance. Agora abra os olhos. Veja as luzes. E Feliz Natal.

domingo, 29 de novembro de 2009

Foi apenas um sonho

Um jovem e uma jovem estão em um bar em uma cidadezinha. Seus olhares ávidos se cruzam e imediatamente se reconhecem, e se encantam por verem seu reflexo brilhando nos olhos do outro. A partir daí, é fácil supor o que acontece. E acontece mesmo, só que as coisas não têm um final feliz.

Se fosse hoje, poderia ser você. Ou eu. Só que a história se passa na década de 50, nos Estados Unidos. É o roteiro de “Foi apenas um sonho”, dirigido por Sam Mendes, e que esteve em cartaz nos cinemas no começo do ano. Perdi no cinema e peguei outro dia em DVD. Adorei tudo: os atores (Leonardo di Caprio e Kate Winslet) estão muito bem, revelando sinais de maturidade aliados ao vigor físico da juventude, o que confere mais força e agudeza às suas interpretações. A direção também encanta, pela precisão dos ângulos, pelos enquadramentos, pela facilidade em dizer com imagens o que poderia estar sendo dito com palavras. Mas o que me impressionou mesmo foi o roteiro.

Voltando ao começo: os jovens começam a conversar no bar, e descobrem que têm várias coisas em comum – sendo a ânsia de vida e movimento a principal delas. Ambos são irreverentes e mostram seu inconformismo com as coisas previsíveis e com as pessoas que esperam muito pouco da vida. Eles se casam e começam a ter, então, a mais tradicional das vidas de casados. O marido trabalha em um emprego maçante, mas que garante o sustento da família. A esposa é dona de casa e atriz frustrada. Vivem em uma cidadezinha entediante e têm uma rotina bastante previsível. E assim, abafando seus sonhos, eles começam a desenvolver sintomas de desgaste: o marido começa a sair com outras mulheres, a esposa começa a ser agressiva com o marido após o fracasso da peça de teatro que tenta estrelar. Ambos começam, no fundo, a acreditar que foi o casamento o assassino dos sonhos.

Só que sonhos são treteiros: eles não se amansam facilmente, e quase nunca morrem. Podem até se transformar, mudando de face de vez em quando, mas desde que sua convivência conosco seja pacífica. E como a vida real dos personagens e seus sonhos não chegaram a um acordo e estavam disputando o mesmo espaço, o sonho ganhou a briga. O casal resolve mudar. Pra Paris. Afinal, Paris é uma festa.

Então, os dois começam a ver a vida com outros olhos, de esperança e sonho, e começam a se organizar para a mudança. O casamento fica bom de novo, e os dois parecem bem felizes. No meio de tudo isso, porém, ela descobre estar grávida. Aí, seu mundo desaba. A realidade, que seria cada vez mais concreta, é que ela tinha um filho na barriga. O que fazer, então, com o sonho?

Acontece o inevitável: o marido fica sabendo da gravidez, e decide que eles não vão mais pra Paris. Como ir com 2 filhos pequenos e outro a caminho, sem garantia nem de trabalho? A esposa não agüenta tanta frustração, e cai numa profunda depressão. Desesperada, vendo seu sonho escapar e se sentido impotente, resolve fazer um aborto. Assim, nada nem ninguém iria detê-la em sua determinação de mudar de vida. Entretanto, seu marido não podia saber de seus planos, e tudo deveria sair como se o aborto tivesse sido espontâneo.

É claro que tudo dá errado: durante o aborto, que fez quando estava sozinha em casa, ela teve uma hemorragia, que não parou de jeito nenhum. E acontece o pior: ela morre.

No final, o filme deixa um nó na garganta e uma pergunta, incômoda e muitas vezes cruel: o que fazer com nossos sonhos?

Vamos por etapas. Quando somos crianças, os sonhos são postos em prática: brincamos de ser. Somos quem queremos ser. À medida que vamos crescendo, percebemos que há possibilidades reais de sermos quem queremos ser: é aquela fase mágica, de ouro, quando começamos a tomar providências pra transformar os sonhos em realidade. Nessa época, sentimos que temos a vida inteira pela frente, e temos a certeza de que tudo vai sair como queremos. Até que um dia entramos no mundo dos adultos, quase sempre ainda sem a vida ter nos transformado em um deles. Percebemos que as coisas nem sempre são do jeito que queremos que sejam. Percebemos que entre a realidade e o sonho existe uma distância considerável. E nem sempre nos sentimos aptos a minimizar essa distância.

Então, muitos entram por um caminho desastroso: tentam se convencer que sonho é antônimo de realidade, sendo, portanto, uma bobagem levá-lo em consideração. Ficam com medo de não conseguirem realizar suas vontades, e entram para o caminho do comodismo – o que, aliás, é bem tentador. Quem nunca se viu tentado a abandonar a faculdade, a se mudar de cidade ou a largar o emprego quando sabiam estar percorrendo o caminho do sonho, só porque percebeu que as dificuldades eram muitas? Só que o prazer de se contentar com o que é cômodo e fácil é só imediato. No médio prazo, as coisas se complicam muito. E começam as implicâncias e amarguras. Se você queria ser atriz e não tentou o bastante, até Meryl Streep, pensando bem, não é tão boa assim: teve foi sorte, isso sim. Se você queria ter se separado e não se separou por covardia, todas as mulheres divorciadas são umas devassas inconseqüentes. Se você queria ter tido um filho e não foi fundo na ideia, que importância tem? Afinal, criança cresce e a gente fica sozinha do mesmo jeito.... Mas infelizmente, a mágoa no peito só tende a aumentar, e vira quase um buraco negro. Vai sugando toda a energia boa dos outros, e a pessoa começa a ficar muito incomodada com a felicidade alheia, e tenta fingir se esquecer de que para conseguir chegar aonde chegaram, tiveram um caminho difícil a percorrer. Essas pessoas alvo da inveja fizeram o caminho inverso: se privaram de muitas coisas no curto prazo, em nome de uma sensação duradoura de felicidade.

Esse, aliás, é, de todos os caminhos, o único indicado. É garantia de um olhar mais terno pro mundo, incluindo a própria vida e a dos outros. E pode ter certeza de que, se não der certo, é porque você não quis tanto assim. E aí, uma boa análise resolve bem, e te ajuda a convencer que o que você quis foi a vida que você tem. Se a gente deseja algo do fundo do coração, a gente só não consegue se algum decreto cármico determinar que aquele caminho não é o seu. É claro que não dá pra realizar um sonho integralmente, e que muitas vezes a realidade é muito cruel, colocando barreiras que algumas vezes são mesmo intransponíveis. Mas até nesses casos, o que importa é sentir que estamos seguindo em frente. E ver o que é essencial em cada sonho. Claro que se a pessoa sofre uma forte limitação física muitas vezes não dá pra ser bailarina, mas se a dança desperta mesmo uma paixão tão grande, não precisa abrir mão dela. É possível adaptar as coisas. Quem sabe não dá pra ser coreógrafa? Trabalhar com pesquisa ligada à dança? Ser crítico de dança? Escrever um blog sobre o assunto? Enfim, não dá pra não tentar ser feliz. A vida sempre joga nossa covardia na cara.

No filme, o preço pago pela protagonista por ter sufocado seus sonhos e se contentado com o papel de esposa foi muito alto. A certa altura, a esposa se sentiu tão sufocada, que quis trocar a realidade pelo sonho sem escalas. Aliás, pela fantasia. Ela quis ser outra pessoa, ter outra vida, vivenciar outras realidades, como faz uma atriz – quando está representando. Na verdade, ela quis fugir. E escapar da realidade não é uma maneira saudável de lidar com ela. Achar que é possível uma vida só de prazer é caminho certo pra frustração. Querer ficar adolescente pra sempre não é uma atitude inteligente. Não dá pra fugir de rotina, de trabalho e de deveres. Quando o prazer é conquistado, e envolveu uma certa privação, é sempre muito mais valorizado por nós mesmos. Mas sempre dá pra incluir pequenos prazeres no dia-a-dia. E ficarmos orgulhosos de nossas conquistas que vieram com o esforço é o essencial pra garantirmos felicidade na vida.
Portanto, façamos tudo que estiver ao nosso alcance pra depois não sentirmos o sentimento de inveja. Não que não tenhamos que fazer concessões na vida, claro que temos. Frustrações são inevitáveis, mas não podem nos desviar do nosso projeto de vida. Quando o casamento entra na jogada, então, a coisa se complica. Conciliar sonhos é difícil. E culpar o parceiro por não termos conseguido o que queríamos é cruel. Culpar filho é mais cruel ainda. Portanto, antes de você querer atrapalhar a vida dele, porque vê-lo fazer o que você tanto queria é quase insuportável e te faz sentir raiva de você mesmo ao constatar que era, sim, possível, pense bem. Assuma a responsabilidade por sua vida. Ter filho não impede de ir pra Paris. É só questão de adaptar o sonho à realidade. Entre viver na fantasia e se resignar à realidade, há que se descobrir uma terceira via. Deixe que os sonhos sejam seu guia. Divirta-se. E tenha uma ótima viagem!

sábado, 24 de outubro de 2009

Quebrando os muros




O resultado da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) foi divulgado esses dias trazendo boas novas: a melhoria do emprego e da renda verificada até setembro de 2008 fez com que 3,8 milhões de brasileiros deixassem a linha de pobreza no ano passado. É um feito pra ser comemorado. E muito. Na comparação com 1993, o país registrou uma queda de mais da metade no percentual de pobres: naquele ano, a proporção de pobres era de 35%. Em 2008, o número registrado foi de 16%, o menor desde que a pesquisa começou a ser feita, em 1992. A linha que define a pobreza é aquela que abrange uma renda domiciliar per capita de até R$ 144. Em parte, esses bons resultados estão sendo atingidos pela alta do salário mínimo, que vem se recuperando rapidamente, beneficiando milhões de pessoas no Brasil.


Pois é, são boas notícias. Ótimas, de verdade. Fico muito feliz quando vejo as pessoas tendo oportunidades. E sair da linha da pobreza é um prenúncio de maiores oportunidades. Pode significar, por exemplo, o acesso a itens ligados a status nas classes mais pobres, como celular de modelo novíssimo – ainda que dividido em 12 parcelas no crediário –, calça jeans “de marca”, cabelo liso de salão, produtos Natura e cerveja Skol na festa tão sonhada, que finalmente pode vir a acontecer. Essas coisas que fazem essas pessoas não se sentirem um zero à esquerda, que as fazem lembrar de que elas têm valor e de que trabalhar é o caminho pra conseguir o que querem dignamente.


Sem dúvida, isso é fantástico. Mas é certo que não basta. Sair da linha da pobreza e ostentar um celular zero bala é insuficiente pra comprar a aceitação dos mais endinheirados – muitas vezes, o tal celular é até motivo de deboche. Na verdade, tem um muro, de concreto, que precisa ser quebrado pros pobres entrarem no mundo do dinheiro. E não estou usando uma metáfora: o muro pode ser muro mesmo, de concreto. Como o que vai ser colocado em volta de algumas favelas e na beira da Linha Amarela, que vai dar acesso a várias atrações das Olimpíadas, no Rio de Janeiro.


Gente, isso é o cúmulo do absurdo! E ainda dão a desculpa esfarrapada que o muro em volta das favelas é pra proteger o meio ambiente do crescimento “urbano”, e que o muro em volta das favelas à beira da Linha Amarela é pra proteger os próprios moradores do barulho da rodovia!!! Tudo isso é indignante. Imaginem o que é você voltar pra sua casa na “cidade murada”. Imaginem o que essa pessoa deve sentir. Se já é humilhante ter que morar numa favela, imaginem voltar pra casa depois de um dia de trabalho num emprego que não te paga mais de um salário mínimo – que te fez sair da linha da pobreza, mas não te fez passar pro outro lado do muro –, depois de ter pegado duas conduções lotadas pra ir e duas pra voltar, e ter que atravessar o tal muro, que te separa oficialmente do mundo do dinheiro... Se essas pessoas já não tinham expressão social, ficarão cada vez mais invisíveis. Chegamos a um ponto em que a mera visão da pobreza é repugnante. Os olhos privilegiados dos moradores da cidade ficarão poupados de uma imagem perturbadora de algo que não sabemos como lidar. Preferiram, então, varrer a poeira pra baixo do tapete.... pra trás do muro. Mas se esquecem de que quando sacudirem este tapete, o risco de tudo ter ficado encardido é enorme.


Pra mim, está tudo errado. Já que o muro existe, independentemente de estar lá ou não, e de a pessoa morar na favela ou na periferia, acho que ele deve ser quebrado, e não transposto. Mas nós, do lado de cá do muro, precisamos contribuir com as ferramentas. Precisamos aceitar a ideia de que todos têm direito à ascensão social, e de que isso não vai nos ameaçar. Acho que esse é o calo da burguesia, é o ponto nevrálgico da questão. De maneira geral, a pobreza é ligada à subserviência, à prestação de serviços pesados, à condição subalterna. O que poderia acontecer se não existisse mais pobreza? Primeiro, teríamos que pôr a mão na massa, porque o leque de opções de emprego passaria a ser maior, principalmente por causa do maior acesso à educação – patroas, tremei!!! Depois, não poderíamos exercer nossa sede de poder, e mandar e desmandar à vontade, porque as pessoas poderiam escolher mais os empregos, sem ter a obrigação de aceitarem tudo caladas. E por último, teríamos que pagar um pouco mais pelos serviços que as classes pobres nos prestam hoje por um custo muito baixo. Será que tudo isso ameaça tanto?


Acho que ia acontecer é muita coisa legal, se as pessoas se tocassem que estão sendo preconceituosas e lidando com os mais pobres de forma defensiva, impedido-os, ainda que muitas vezes incoscientemente, de entrar no “nosso” mundo. Primeiro, a violência ia diminuir muito, porque se sentir rejeitado é ainda pior do que sentir fome: causa até guerra. Depois, a gente se sentiria muito melhor como seres humanos, sentir que estamos fazendo justiça. Não iríamos sentir tanta culpa de ter as coisas, porque estaríamos sentindo que estamos contribuindo pras pessoas que não têm poderem se sentir no direito de batalhar por elas, num ambiente menos hostil.


Enfim, e falo por experiência própria, é muito legal poder lidar com os mais pobres sem preconceito. É muito enriquecedor. Acho que todo mundo deveria fazer isso. Trocar experiências é fantástico. Perceber que você, pela simples convivência aberta com os que têm pouco dinheiro, está contribuindo pra quererem melhorar o padrão de vida, estudar, viajar e ter computador e internet. E perceber que essas pessoas também estão contribuindo pra sua vida melhorar também. Experimentem ir a uma festa na periferia. Ou passar por lá num fim de tarde de sábado, pra irem buscar sua filha que foi brincar na casa da sua mensalista, diarista ou passadeira. E aí, entrem um pouco e vão pra cozinha, que é onde as conversas mais íntimas acontecem, prosear um pouco com ela, comer um pedaço de bolo (delicioso, diga-se de passagem) enquanto as filhas pedem “altas” da brincadeira. Garanto que vai ser uma (primeira) experiência inesquecível. E vocês podem até ficar grandes amigas. Isso acontece – garanto. Neste sábado à tardinha, quando vocês dirigirem de volta pra casa, aproveitem pra entrar em outra freqüência. Tentem ver as coisas com outros olhos e vejam o lirismo da cena de vizinhos reunidos nas cadeiras colocadas nos passeios das casas, conversando numa boa e vendo os filhos brincarem na rua. Que ainda deixam a vida passar sem pressa. Que ainda conseguem sentir um grande prazer com essas coisas que não precisam de dinheiro e que, por isso, são muito mais livres que nós.


E quanto à festa, vocês vão se divertir e se emocionar. Vão perceber que a gente não precisa de muito pra ser feliz. E que quanto mais diversificado é o público, melhor é a festa.