quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Impressões e reflexões sobre a ilha de Fidel

Tá certo que já tem um mês que eu voltei de lá, e durante a viagem já estava com uma vontade grande de escrever uma postagem a respeito. Mas cadê coragem? Trava tudo, e não sai nem por decreto.
Decreto? Por que usei essa palavra? Será que isso tem alguma coisa a ver com Cuba?
De tão impactante, a Ilha de Fidel é daqueles lugares que te nocauteiam. Te deixam momentaneamente paralisada. E nem precisa de lutador de boxe pra fazer isso – que, aliás, andam em falta por lá: os feras foram em penca pra Miami.
Penca? De novo me pego usando uma referência inconsciente ao universo cubano: a banana é dos principais produtos de exportação de Cuba. Representa 70 % da produção de frutas do país. Seria a República das bananas às avessas?
Ao desembarcar em Havana, o aeroporto já causa impressão. O fato de não carimbarem a sua entrada no país em seu passaporte, por mais avisado que você esteja, causa uma sensação estranha. Um certo desconforto, talvez. Dá um pouco de dó – não no mau sentido, mas no sentido daquela visão que te faz enternecer.
Ternura: perdê-la, jamais. Você começa a se perguntar o que vem por aí – será que é tudo tão diferente assim? E torce pra ser mesmo. Afinal, o que vão fazer lá hordas e hordas de turistas senão pra ver uma realidade tão desejadamente única num mundo tão previsivelmente globalizado? Seria o país o depositário de nossas ilusões perdidas? Utopia? Tirania?
Chegando no saguão do desembarque, visualmente é tudo tranquilizador, e o coração dá uma desacelerada quando vamos ao cajero automático e conseguimos sacar os CUCs (moeda local que vale pros estrangeiros e cuja cotação é praticamente 1 pra 1 em relação ao dólar) sem nenhum problema. E vamos então pegar um táxi, que por via das dúvidas, madrugada é perigosa em qualquer lugar do mundo...
Mas aquela brisa cálida daquela noite... não vou esquecer nunca. Ficou pra sempre impregnada no meu nariz, no meu pulmão e na minha alma. Naquele momento – como acontece, aliás, quase todas as vezes quando chego pela primeira vez a algum lugar – eu engoli Cuba. Sorvi – a inteira, comendo com os olhos. Na verdade, foi uma sensação diferente da de todos os lugares, porque muita expectativa dá palpitação, e não sei se é isso que começa a provocar a sensação de uma leve vertigem. Tenho a sensação clara de que a adrenalina está aumentando vertiginosamente no sangue: agora é encarar ou fugir.
Mas por que isso? Será mesmo uma luta? De que contra que? Será Cuba uma figura assim tão sedutora, a ponto de me colocar num lugar de lutar contra meu próprio desejo? Afinal, Cuba é um guerrilheiro aguerrido e barbudo, que fala grosso e dá as cartas, e enfrenta Golias - tio Sam com uma altivez improvável. Mas é militar e repressora, e me ensinaram que devemos prezar a liberdade individual acima de tudo. Então, por que tamanho fascínio? Teria cinco dias, e só isso, pra responder a essa pergunta.
Estamos, então no ringue. Agora somos Cuba e eu. Começo a estudar o “adversário”: desejo suas virtudes, e quero mais que derrotá-las: quero tê-las em mim. Como, afinal, fazem os canibais. Quero estudar todos os seus movimentos.
Tenho a impressão de que tal estado de torpor me fez acreditar que fiz uma viagem no tempo, e estamos na década de 50. Casas e carros pararam no tempo. Não há miséria, mas tampouco riqueza à vista. Será que isso é bom? Chegamos ao hotel, e é outro choque: é lindo, fresco e suntuoso. Com direito a wi-fi (pago à parte) no lobby e todos os confortos que o dinheiro pode comprar. Esse é um dos pontos que te intrigam de cara: há duas realidades paralelas, do povo nas ruas e dos turistas. São duas moedas – os locais recebem em outra moeda diferente da que os turistas têm acesso, que vale 500 vezes menos, e com a qual pagam o acesso ao transporte público, à cesta básica, a museus, esses bens necessários – cultura lá é considerada item necessário. Pras demais necessidades (ou vontades, dependendo do ponto de vista) – que incluem, por exemplo, mais comida além da cota individual permitida pelo governo – os cubanos têm que usar a moeda “dos estrangeiros”, e aí a conta não fecha, porque a moeda vale mais ou menos o mesmo que o dólar, e o piso salarial dos cubanos é de 10 dólares em média. Imagina que um sabonete Lux custa 0,45 CUC. É caríssimo!!! 5% do salário de um empregado da construção civil vão num sabonete, se ele quiser esse “luxo”.
Já no dia seguinte, fomos passear ao léu pelo centro e ficamos impressionados pelo excesso de abordagens dos locais, que pedem, pedem e pedem sem parar. Dá pra entender, por causa do contexto de privação em que eles vivem. No começo, incomoda, já que a gente quer ser simpático, dá papo, e isso só piora as coisas: de novo, a sedução cubana toma conta e a gente se vê envolvido na conversa e abre mesmo a mão. Depois a gente passa a ver pelo lado bom (eles só pedem, não ameaçam nem assaltam) e começa a sentir uma segurança impensável pra quem circula nos grandes centros urbanos do Brasil. A abordagem é grande, mas não vimos nada de violência, mesmo naquelas ruazinhas com aquelas casas que na nossa cabeça são perfeitos cortiços. É uma pobreza aparentemente decente.
Às tantas, um casal muito simpático nos pergunta se já fomos à fábrica de charutos, e respondemos que não, que era nosso primeiro contato com a cidade. Eles então nos convidam pra irmos a uma casa cujo proprietário (sim, os cubanos são donos das próprias casas) seria membro da cooperativa dos trabalhadores da indústria do tabaco, para vermos vários tipos de charutos, e eventualmente comprar alguns. Entramos na casa, sentamos, e acabamos levando duas caixas. Detalhe: no Brasil, compramos uma caixa de Cohiba (25 unidades) por 800 reais, e lá compramos por mais ou menos 200 reais. Na loja do hotel, a unidade era vendida por 12 dólares, o que dá mais ou menos 470 reais a caixa. Antes de irmos embora, questionamos o carregador de malas dentro do próprio hotel, e ele nos passou um cartão de um conhecido, que chegou no lobby em 10 minutos e, depois de negociarmos mais firme, conseguimos fechar mais duas caixas por inacreditáveis 70 dólares!!! 60 reais cada caixa!!! Estranho, não? A impressão inicial do sistema político-econômico não foi nada boa: parece que ele favorece muito um esquema paralelo, e já que o governo regula demais o acesso ao capital, eles o conseguem por outros meios. Mas pensando bem, no capitalismo isso também acontece.
Continuando o passeio, escutamos música, música, muita música. É inebriante. Contagia mesmo. Em qualquer lugar, em uma biboca ou em hoteizões de luxo, os calientes ritmos locais são a trilha sonora da vida dos cubanos, em qualquer momento. E eles conhecem muito do assunto, adoram e têm casas noturnas, uma ao lado da outra, especializadas nos mais diversos ritmos – do bolero ao jazz, que aliás é uma paixão dos havaneses. Além de tudo, têm a sedução da música...
Num segundo passeio, o lado feio do sistema apareceu nu e cru – estávamos esperando transporte no centrão da cidade, e vieram duas moças com uma criança pequena, nos pedindo pra comprar leite em pó pro bebê. Estávamos em frente a uma mercearia, e perguntamos quanto era. Cada pacote de leite era 2,50 CUC. Pasmem!!! Um pacotinho de leite a 4 reais!!! Isso porque a cota de leite da criança havia esgotado, e eles não tinham direito a mais com a moeda deles. O recurso é pedir pra algum estrangeiro comprar. E isso é muito esquisito! De novo, a sensação de que o sistema induz a entrar em esquemas duvidosos, porque ninguém aceita calmamente viver com menos do que julga necessário, e como não há saída pela via legal, dá-se um jeito.
Isso então me levou a pensar o que seria dos cubanos sem os turistas. E esse pensamento me causou um mal-estar. Me parece que os turistas vão em massa pra lá, sobretudo, pra ver o sistema socialista in loco, vivenciar um pouquinho dessa realidade a priori tão diferente da que estamos acostumados. Só que, estando lá, fica claro que isso não vai se manter por muito tempo. Ninguém gosta de viver com pouco, e nem de sentir que tem todo um mundo lá fora, que chega até eles das mais variadas formas (incluindo novelas brasileiras, que aliás são adoradas por eles!), com toda sorte de apelos aos quais eles não têm acesso. Sentir-se isolado (acho que alijado seria um termo mais apropriado) num mundo globalizado não deve ser nada bom. E é inevitável: o acesso a esse mundo passa necessariamente pelo acesso ao capital.
E quando a transição pro capitalismo for consumada? Os turistas vão ter o mesmo interesse? Os cubanos precisam visceralmente do dinheiro do turismo, e os turistas se sentem incrivelmente atraídos pelo sistema cubano. E se esse sistema colapsar? Deu uma sensação inicial de que o sistema é algo feito pra inglês ver, porque na vida real as práticas capitalistas estão a todo vapor. A ilha pareceu um imenso zoológico – ou seria circo? – em que as pessoas estão engaioladas, sendo atração turística, às custas da privação da liberdade. E o pior é que a jaula é de vidro, porque não há barreiras físicas pro mundo. É de enlouquecer.
Essa impressão ficou mais forte quando fomos jantar em um restaurante muito frequentado por locais. Enfrenta-se uma fila enorme pra entrar (uma hora, mais ou menos), e lá dentro não é nada demais pro padrão dos turistas. Chamou muito a atenção foi a fartura: um prato dava tranquilamente pra três. Os preços dos vinhos também chamaram a atenção: um vinho espanhol dos bons, que em supermercados do Brasil custa 60 reais, lá era o equivalente a mais ou menos 24 reais, e isso no restaurante! A ideia inicial de que o país era caro pros turistas caiu definitivamente por terra. Talvez a fartura da comida, aliada aos bons preços, explicasse a lotação do restaurante. Mas fiquei muito intrigada, porque os preços eram bons pra nós, mas pra eles eram muito altos! Perguntei pro garçom se havia um outro cardápio pra eles, com a moeda local, e ele respondeu que não, que os preços eram os mesmos! Fiquei chocada. Como eles tinham dinheiro praquilo? O garçom disse que as pessoas conseguem dinheiro de várias maneiras ilegais, ou “paralelas” – entre elas, remessas de dinheiro de parentes que vivem sobretudo nos Estados Unidos – mas peraí, alguém falou em igualdade de oportunidades ? Isso não é favorecimento?
Outras coisas me marcaram durante minha estadia lá: os garçons que são também funcionários públicos – algo muito inusitado pra minha cabeça, isso de misturar Estado e lazer –, as cubanas super cheirosas, que passam e deixam um rastro de perfume, as carecas dos homens, cuidadosamente fabricadas com máquina zero (como há carecas lá!), a educação e instrução da população em geral, as galerias de compras com aqueles sapatos que eram cópias grosseiras dos que compramos aqui, a cantora estupenda num bar de música local (que às tantas do show, quando cantava uma música que evocava a religiosidade de seus ancestrais africanos, acabou “recebendo” mesmo “o santo” e teve que ser acudida por alguém), o atrevimento e a naturalidade com que as meninas usam roupas curtinhas e decotadas, e ninguém passa cantada, o calor de rachar coquinho (olha aí outro símbolo tropical, não por acaso), o teco-teco russo caindo aos pedaços que nos levou pra Cayo Largo, os táxis que nos deixavam com medo de entrar de tão velhos e mal conservados, a altivez, a beleza, o aplomb e a presença magnética do povo em geral, a música, a música, a música.
E o arco-íris. Um dia que estávamos caminhando na Plaza Vieja, caiu um pancadão de chuva de verão, e logo depois foi só olhar pro céu e lá estava ele. Enorme, lindo, democrático, coloridíssimo. A composição ideal daquele cenário do centro antigo. O cenário me deixou levemente grogue. Não chegava a ser um nocaute, mas sentia que ele estava próximo.
Nos outros dias que passamos na ilha, a impressão inicial foi se esvaindo: não voltei mais impressionada com a privação de liberdade do povo que com seu savoir vivre. As contradições do sistema realmente impressionam: não existe analfabetismo no país, toda a população é obrigada a ir pra escola até os 14 anos, o acesso ao ensino superior é realmente aberto a todos e sem custos, a saúde é um colosso, o turismo funciona maravilhosamente, e há, senão um nível de igualdade, pelo menos uma redução drástica das desigualdades do sistema capitalista, ao mesmo tempo em que o capital circula, sim, à luz do dia em negócios não supervisionados pelo governo, não há liberdade pra viajar pra fora do país, e até mesmo a liberdade de comprar é cerceada, já que os produtos são caríssimos, poucos importados chegam e o salário é curto. Imagino como fica a questão identitária dos cubanos, nesses tempos em que o consum(ism)o nos define em larga medida e o querer ter grita dentro de nós. Será que eles desenvolveram um outro tipo de relação com o consumo? Ou seriam extremamente frustrados com essa privação? E na questão da liberdade? Será possível que o modo de vida “socialista” os torne mais livres, uma vez que menos escravos do capital? Ou será que isso só os torna escravos da capital, já que mal podem sair de seu perímetro?
Bem, frustração não é exatamente a palavra pra definir o estado de espírito desses lutadores. A sensação que fica pra nós é que precisaríamos de alguns meses morando lá, convivendo na intimidade com a população, pra entender toda a complexidade do sistema. Pra nós é indecifrável, e ponto. Mas olha, quer saber? Voltei de lá apaixonada. Foi nocaute mesmo, e acabei me entregando. Não dá mesmo pra pensar direito sob 40 graus, e os sentidos falam mais alto.
Os estereótipos que tinha antes de chegar foram embora, mas ficou coisa muito melhor no lugar. Uma sensação de esperança. A mesma que os cubanos dizem e parecem mesmo ter. Esperança de que a sua luta e sua revolución possa ter valido a pena: quem sabe eles não encontram mesmo uma via alternativa, com a chegada gradual da economia de mercado sendo recebida com a mesma postura crítica com que enfrentam as questões políticas em geral? Quem sabe não assistiremos a uma economia de mercado mais justa e igualitária tomando forma por lá? Isso só o tempo vai responder.
No momento, Cuba pra mim é um arco-íris. Que chega lindo, e sedutor, depois da pancada. Ele é bem colorido, e traz esperança de estiagem. Ao mesmo tempo, só apareceu porque houve um refresco no calor. É o melhor dos mundos. E ainda dá direito, a quem se atrever a trilhar seu caminho, de encontrar um pote de ouro no fim. Mas isso, só praqueles que acreditam. Pros aguerridos, pros fortes: hasta la victoria, siempre!

2 comentários:

  1. Olá Izabella,
    A leitura desse seu post, me fez viajar de volta à Cuba onde estive em janeiro de 2007 e me fez ficar com vontade de voltar pra lá em breve ... Bjs e saudades! Eugenia

    ResponderExcluir
  2. Oi Eugênia!!

    Tô orgulhosa de você ter lido a postagem! Sua opinião é da maior importância pra mim. Obrigada!

    Beijos e saudade demais!

    ResponderExcluir