quinta-feira, 6 de maio de 2010

Elogio à loucura


Queridos leitores

Depois de um período de indefinições e excessivas reflexões, que de uma maneira ou de outra provocaram um bloqueio criativo, resolvi finalmente voltar a escrever! Pode ser que o que tenha motivado a volta seja a urgência de vida, talvez a chama santa da loucura. Provavelmente, as duas coisas.

Há tempos ensaio escrever um texto sobre a loucura, mas é sempre tão difícil... Fiquei muitas vezes me questionando por que. Até que percebi que era difícil porque, muitas vezes, ela não pode ser tratada como objeto. Tal distância de segurança não ajuda em nada. Percebi que tinha, sim, que me assujeitar a ela. Ou melhor, sabê-la viva em mim – onde há vida, há loucura – e fazer dela minha aliada, domesticando-a na medida certa. Relacionando com ela dessa maneira, dá pra ser feliz. Dá pra escrever, viver, trabalhar e divertir.

Explico melhor. A loucura santa é aquela comichão que temos de fazer as coisas, e que está além da razão e de todas as coisas pequenas, dos estereótipos, dos preconceitos, da coerção social e de tudo aquilo que insiste em nos fazer estacionar. É aquilo que te faz esquecer os medos. Te faz mostrar a cara e superar o medo do ridículo. Da rejeição. Da frustração. Da impostura. Da perda. Na verdade, ela te faz achar que você tá podendo. E quer coisa melhor do que isso? Sem a loucura santa, a humanidade não teria feito tantas maravilhas, em explosões criativas que certamente usaram-na como combustão. Não teriam sido vividas tantas plenas histórias de amor – assim como outras tantas não teriam sido desfeitas. Não teríamos filhos. Não existiria a pesquisa científica, principalmente em áreas abstratas, nas quais se trabalha com entidades invisíveis e pouco prováveis. Não existiria o détour, aquele “giro” analítico que permite que o conhecimento novo seja produzido. Metafísica, religião e espiritualidade, então, seriam fora de cogitação. Aliás, não existiria nem a cogitação. Não existiria sequer a História. É a loucura que faz com que tomemos atitudes rumo à evolução. Através de uma pequena revolução interior. Fé e Coragem são produto da loucura santa. Pensando bem, talvez ela não seja nada mais do que um impulso da Alma... Nos faz transcender as limitações humanas. Sem ela, não damos um passo rumo ao desconhecido. E não é isso a vida? Sem dúvida, a loucura é vital. Absolutamente precisamos dela pra seguir em frente. A loucura está na base de qualquer construção: de realidades e de ficções.

Mas e quando a ficção toma conta da realidade? Aí a história muda de cor. Fica preta. É porque aí estrela a loucura-psicose. Loucura-loucura. Aquela clássica, doentia, sombria. A estrutura frágil de quem sofre deste mal não dá conta de lidar com o impulso vital, com aquela chama sagrada da loucura santa, que é constitutiva em nós e nos faz acreditar que somos reflexos do Divino, porque criadores e desbravadores. A natureza oprimida do psicótico não permite que a combustão desta chama aconteça de maneira saudável, e o que se vê é cinza pra todo lado. Em vez de movimento, se vê inércia. Em vez de amor, raiva. No lugar da construção, a destruição. No lugar da fé, o desespero. E sempre um vazio enorme, que parece não ser preenchido por nada. A pessoa se julga tão inferior e incapaz que acaba por ter que escapar da realidade pra dar conta de ficar viva. Ou melhor, ela acaba por viver outra realidade, negando a realidade objetiva. E aí sua identidade fica impregnada de poder, e ela pode tudo: conhece as pessoas mais importantes e as influencia, inventa as coisas mais mirabolantes, é sempre alvo da maior consideração – muitas vezes, perseguição – dos outros, e por aí vai. Mas ela não fica feliz: pelo contrário, quando vem o insight do surto, o doente piora seu quadro sempre depressivo. Ou seja, a loucura saudável não foi alimentada: ficou doente, e o que se vê é só tristeza e destruição.



Não sei o que é possível fazer para que isso não aconteça, e as pessoas possam lidar com a chama santa da maneira mais saudável possível. Aliás, se eu soubesse, já teríamos a cura pras psicoses. Mas enquanto isso não acontece, é melhor olharmos pra loucura e pros “loucos” como algo natural, próprio da natureza humana. Eles não são diferentes de nós, e o que eles têm nós também temos. Eles só não conseguem lidar com este material que temos em comum. Mas a natureza é a mesma. Muito melhor agregar que segregar. E quem não tem pelo menos um parente próximo ou amigo meio ou completamente louquinho? E quem não tem histórias divertidíssimas ou emocionantes que foram vividas com essa pessoa? Tenho dó de quem não se permite conviver com a psicose. Por preconceito, perde-se a chance de agregar outro olhar pras

coisas da vida. Não estou falando daquele louco que arrasa a vida de quem convive com ele – principalmente se ele cisma com a sua cara e começa a delirar feio com você – e ainda assim não se digna a se deixar medicar. Aí e outra história. Desde que não seja família, temos direito de escolher com quem convivemos, e isso vale pra todos os quesitos se olhe. Preconceito é que não dá.

E voltando ao começo, tenho a impressão de que a arte é um santo remédio pra acalmar a loucura. Ela permite que o psicótico delire no campo que aceita e deseja o delírio. E temos aqui uma contradição: ao mesmo tempo em que é doença, a loucura é também remédio. Ela é vital pra curar a inércia e o bloqueio criativo. Mas pode também deixar o delírio se consumir no devaneio, paralisar a pessoa e não render nenhuma forma de arte. É a própria phármakon de Platão: remédio e veneno ao mesmo tempo. Assim como a palavra.

Que venha a loucura. E que ela tenha forma de sopa de letrinha: alimenta e não engorda.



*Tenho tanto fascínio pela loucura que fui investigá-la até as últimas conseqüências, e fiz minha tese de doutorado sobre o discurso de pacientes com esquizofrenia. Pra quem tiver curiosidade, pode conferir em:

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=115121