quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Sobre deficiências, eficiências e transcendências

Queridos leitores
Esses dias recebi um e-mail que me tocou profundamente (vejam link de vídeo no final da postagem). Mostrava um casal de bailarinos fazendo um pas-de-deux. Mas tinha um detalhe: a bailarina não tinha um dos braços. E o bailarino não tinha uma das pernas. E, em seu lugar, uma muleta. E todo o seu talento e uma extraordinária força de vontade.
Fico muito impressionada como algumas pessoas especiais – e não estou me referindo só aos bailarinos em questão – que conseguem fazer poesia com a ausência. Aliás, acho que a arte é bem isso: uma forma de transcender uma ausência. Normalmente, essa falta é psicológica ou simbólica. Mas e quando a falta é também física? Sabemos que o corpo é a matéria-prima da dança. Como, então, fazê-la com um dos elementos faltantes – no caso, uma das pernas ou um dos braços? O mais surpreendente é que a dança fluía lindamente. E não provocava nenhum mal-estar no espectador, como muitos podem pensar, imaginando a cena.
Para entendermos isso, precisamos desconstruir nossa ideia do corpo. Da beleza. E, principalmente, os nossos valores. Certa vez, conheci um professor que havia sofrido um acidente que o havia deixado em uma cadeira de rodas. Ele me disse algo que nunca esqueci: deficiente, todo mundo é em alguma coisa. Só que os chamados deficientes físicos trazem consigo essa falta visível, enquanto as outras deficiências podem ser despistadas ou escondidas. E aí entra outra questão, que é sempre muito complicada, que é a de aceitar o diferente. Deus, como isso é difícil! Ser diferente, então, é absurdamente difícil. Pensando bem, ser diferente, acho que não é o problema. O problema é se sentir diferente. Palavrinha complicada, essa. Nunca fiz esse estudo, mas suponho que diferente seja muito mais usada em contextos de significado negativo. Muitas vezes, com significado próximo de bizarro. E em outras tantas, com significado sutilmente próximo a deficiente. Deficiente no sentido de déficit mesmo, de falta: claro que estamos falando do que socialmente é considerado indispensável ou desejável. Ouvimos com freqüência que fulano é diferente se usa roupas “extravagantes” – logo, falta bom gosto. Que beltrano é diferente se é tímido – logo, falta simpatia. Que sicrano é diferente se é rebelde – logo, falta juízo. E por aí vai...
A sociedade nos impõe padrões e estereótipos que são, muitas vezes, cruéis. Como aceitar nossa diferença, se antecipamos o julgamento do outro e começamos a sofrer só com a ideia de que seremos rejeitados por causa dela?
Em primeiro lugar, é urgente que façamos uma reflexão sincera sobre a diferença. Temos que ser mais complacentes. Começando por nós mesmos. Já seria um ótimo começo. Tentar não ficar de mal com as características que nos fazem sentir diferentes. Aliás, trocar diferente por singular seria fantástico. Não podemos entender a diferença como algo limitador – como deficiência. Já as dificuldades estão aí pra serem superadas. E aprendemos desde bem cedo, e sempre de maneira frustrante, que nos depararemos com elas durante toda a vida – eis o que nos torna humanos, e não divinos. Nossa busca na Terra gira em torno disso: passamos toda a vida tentando superar tais dificuldades, espelhando-nos na imagem que aprendemos da divindade. Queremos a Perfeição, e nos esforçamos por consegui-la. Na verdade, nos sentimos eficientes quando superamos o que consideramos nossas dificuldades. São sempre momentos mágicos pra nós. São lindos momentos.
Indo nessa direção, evocamos um novo conceito de beleza, que está na transcendência. Um corpo belo não precisa ser um corpo padronizado: são belíssimos os corpos dos bailarinos que superam sua dificuldade e flutuam no palco, com a ajuda de uma muleta – que eles transformam na coisa mais sutil do mundo. A alma se revela em toda a sua plenitude. E quando isso acontece, todas as coisas são belas. Transcender preconceitos, dificuldades, sentimentos ruins e tudo aquilo que nos afasta do Divino é a beleza em estado bruto.
A delicadeza dos bailarinos fazendo arte com seus membros amputados, movimentando-se no palco, foi a responsável pela beleza e magia daquele número. Naquele momento, tudo era lindo. As figuras dos bailarinos ficaram impregnadas de um grande poder. Dali pra frente, elas não se dissociarão mais de uma imagem bela e forte. No palco, as imensas dificuldades de locomoção e equilíbrio, o medo paralisante da rejeição, o conformismo e, principalmente, os preconceitos, foram transcendidos pelos bailarinos. Sem agressividade e com muita delicadeza. E com isso, um conceito foi mudado: o de que os quatro membros são imprescindíveis para a dança.
Lindo demais é ver os bailarinos acompanhando os seus parceiros, apoiando-se com firmeza e suavidade, transcendendo seus estereótipos e revelando o que de melhor há neles: a percepção de que é grandioso superar as próprias dificuldades e ajudar o outro a fazer o mesmo. A percepção de que o corpo é apenas um instrumento da alma. E lindíssimo é ver a música impulsionando esse momento, ajudando a tirar a chamada deficiência física do silêncio a que é condenada.
Por isso, amigos, prestemos atenção ao som da música: a que vem da alma. Ela tem o poder de nos impulsionar a fazer coisas antes inimagináveis. Tem o poder de nos inebriar de vontade e força, e de deixar florescerem todas as nossas potencialidades. Tem o poder de nos fazer dançar e flutuar pela vida afora. De sentirmos, mesmo que por alguns momentos, que não há mais falta. E quando a escutamos, ela nos pega pela mão e nos leva a realizar atos nobres e belos. A fazer a nossa obra. E a enxergar que estamos no mundo pra transcender as dificuldades, aprendendo a nos amar e a amar o próximo da mesma maneira.
Quando escutamos essa música, ficamos mais perto de Deus.

8 comentários:

  1. Aí não posso deixar de citar Morin, para quem os grandes iniciadores da revolução humana, que trocaram o conforto e segurança das árvores pelos perigos da savana, foram os anormais, os rejeitados, oa apátridas, os aventureiros e os rebeldes. Vive la différence!

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  2. LINDO,emocionantes o texto e a dança, se completam, transcendem.

    Irene

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  3. Oi, Izabella.

    Eu já conhecia esse vídeo e fiquei muito emocionado com a leveza, a harmonia, a beleza dos bailarinos. A sua crônica toca num ponto fundamental: a gente precisa aprender a conviver com o diferente - e a entender, de uma vez por todas, que é justamente a diferença o que torna o mundo divertido e interessante. Já pensou que tédio viver rodeado de espelhos? A biodiversidade é um conceito precioso não apenas para a ecologia!

    Em tempo: você postou essa crônica no dia 17, meu aniversário. Obrigado pelo presente!

    Beijos,

    Sérgio Klein

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  4. Pois é, gente, a diferença... Eu não toquei em dois pontos fundamentais que vocês tocaram: muitas vezes, a diferença é, mais do que bem-vinda, fundamental para mudar o estado das coisas, e mesmo para iniciar revoluções humanas - pequenas ou grandes. O outro é a parte legal e leve da diferença, de tornar o mundo interessante. Muito legal. Viva a diferença!!!

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  5. Ser considerado diferente, em algumas situações, aprisiona. Não se pode mais sair do lugar em que os defensores dos padrões colocaram vc e tudo o que vc faz ou deixa de fazer passa a ser justificado porque vc é diferente... Às vezes penso que bom deve ser ficar invisível.

    Bella, que bom essas palavras. Elas acabam sendo a voz de todos nós. Obrigada
    Letícia

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  6. Realmente, é desesperador a gente ter que caber dentro do rótulo que deram pra gente - muitas vezes desde bem cedo, na infância. E o pior é que, infelizmente, ficar invisível seria o mesmo que varrer a poeira pra baixo do tapete... O legal que eu acho é quebrar as expectativas dos outros e sair do lugar que nos colocaram: é, por exemplo, dançar sem ter uma perna ou um braço. Temos mais é que ter coragem de fazer isso mais e mais. Quem sabe assim as coisas não vão mudando, mesmo que sutilmente? Abaixo a invisibilidade! Vamos por a cara na rua! Pelo menos fica mais fácil de se acostumarem com ela...

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  7. bella, queria partilhar com vcs um texto,
    talvez seja uma poesia caipira, de estrangeirismo
    descabido, mas que revela coisas...ele foi feito em uma visita a um lugar de aprisionados, pelo descabimento pergunta sobre liberdade em silêncio.
    beijos, mao
    http://transobjetocoletivo.blogspot.com/2009/04/otransobejtocoletivo.html

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  8. Nossa, Bella... se eu conseguisse me expressar desse jeito...
    Impressionante como cada palavra sua consegue me tocar tanto! Parece que você traduziu meus sentimentos...

    Não desista dos seus sonhos. Por você e por nós.
    Parabéns e obrigada por esse presente.
    Beijo,

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